segunda-feira, 18 de setembro de 2017

JURISTAS PELA DEMOCRACIA-MS REPUDIAM CENSURA À ARTE LIVRE E A CRIMINALIZAÇÃO DOS ARTISTAS

O coletivo Juristas pela Democracia-MS vem por meio da presente nota repudiar o ato de censura à liberdade artística ocorrido no último dia 14 de setembro, que teve como ápice a apreensão pela Polícia Civil da tela “Pedofilia”, uma das obras da exposição “Cadafalso”, da artista plástica mineira Alessandra Cunha, que está desde junho deste ano no Museu de Arte Contemporânea de Mato Grosso do Sul (MARCO), arbitrariedade cometida após os deputados Coronel David (PSC), Herculano Borges (Solidariedade) e Paulo Siufi (PMDB) registrarem Boletim de Ocorrência junto à Delegacia Especializada de Proteção à Criança e ao Adolescente (DEPCA).

Os parlamentares estaduais e o delegado da DEPCA viram uma obra de arte que expressava nitidamente uma denúncia da violência machista e da pedofilia como apologia à pedofilia! Em vídeo que teve ampla repercussão, o delegado responsável pela apreensão chegou ao descabimento de afirmar que o quadro incentiva o crime de estupro de vulnerável e induz pedófilos à satisfação da lascívia, referindo-se de modo indevido ao museu como “local do crime”. Para coroar o sem número de abusos, violações e absurdos, ainda ameaçam incluir a artista no Cadastro Estadual de Pedófilos, outra excrescência produzida pela maioria do legislativo estadual, bem como instituir censura prévia, ou seja, a obrigatoriedade de que seja fornecida anteriormente lista das exposições previstas por determinado período para que seja possível averiguar o conteúdo de cada uma delas.

A atitude do delegado configura claramente abuso de autoridade, já que não há tipicidade penal ao menos em tese que seja apta a configurar o crime de apologia ao crime, isto é, não há nada que justifique apreender uma obra de arte e fazer com que quem a criou e a expôs responda a inquérito policial. Neste sentido, vários setores já se manifestaram, inclusive o Ministério Público do estado. É flagrante a violação da liberdade de expressão artística, inscrita como cláusula pétrea entre os direitos e garantias fundamentais na Constituição Federal, em seu artigo 5º, inciso IX, que assim dispõe: “é livre a expressão da atividade intelectual, artística, científica e de comunicação, independentemente de censura ou licença”. Frise-se que a liberdade de expressão artística abrange a liberdade de criação, produção e divulgação de uma obra de arte. Tal liberdade é parte indissociável da própria liberdade de expressão em geral, princípio consagrado em vários dispositivos constitucionais e também na Declaração Internacional dos Direitos Humanos de 1948.

Não há na obra e na exposição como um todo qualquer incitação pública à prática de crime, conforme tipificado no artigo 289, do Código Penal, nem de apologia pública de fato criminoso ou de autor de crime, como tipifica o artigo 287, do mesmo diploma legal. Não há o dolo de consumar uma coisa ou outra. Há, pelo contrário, denúncia poética do machismo e do mal que o mesmo causa às mulheres, inclusive a crianças e adolescentes. A exposição “Cadafalso” é fechada, havendo inclusive restrição quanto à idade para acessá-la. Ademais, não há qualquer ato atentatório à dignidade da pessoa humana, tampouco manifestação de ódio contra coletividades de qualquer natureza, únicas situações que poderiam limitar a liberdade aqui referida. Pode-se não gostar de uma obra artística, por questões estéticas, religiosas e morais, mas jamais se pode cogitar censurá-la, posterior ou previamente.

Está claro para nós, Juristas pela Democracia-MS, que o triste fato acontecido em Campo Grande faz parte de uma escalada obscurantista, fascista e autoritária que neste momento atinge a liberdade artística e os artistas em vários lugares do Brasil. Já tivemos, em uma semana, o cancelamento (autocensura pelo Santader Cultural) da exposição “Queermuseu”, em Porto Alegre-RS, após investida do protofascista Movimento Brasil Livre (MBL), e do cancelamento de uma peça na qual Jesus Cristo era representado por uma pessoa transexual, em Jundiaí-SP. Em todos os casos, não só as ações de grupelhos fascistas causam sobressalto, como também o envolvimento de autoridades policiais, judiciais e legislativas na repressão aos artistas. Mais ainda, essa escalada se insere no quadro geral de atentados contra as liberdades democráticas promovidos por um Estado de exceção que aos poucos substitui o Estado democrático de direito duramente conquistado, e que se manifesta na criminalização política de lideranças e organizações progressistas, fornecendo o caldo de cultura para o surgimento de movimentos como “Escola Sem Partido”, que pretende estabelecer perseguição contra professores, e como o que defende a famigerada Lei Harfouche, aqui no estado.

Falar em arte indecente, imoral ou degenerada remonta ao nazismo. Será que os guardiões da moral e dos bons costumes farão fogueiras de quadros e livros novamente? O que diriam os deputados e o delegado se tivessem a oportunidade de visitar vários museus mundo afora e de contemplar obras, algumas delas até clássicas, que poderiam assustá-los bem mais que a tela “Pedofilia”, inclusive em países que muitos dos que compartilham do pensamento obtuso deles têm como parâmetro de civilização? Não podemos permitir tamanha regressão civilizacional!

Nós, Juristas pela Democracia-MS, manifestamos irrestrito apoio à artista Alessandra Cunha, à direção do MARCO, à professora Lúcia Monte Serrat Alves Bueno; ao gerente de patrimônio Caciano Lima e a todas as pessoas atingidas por essa tristemente inspirada ação policialesca. Colocamo-nos à disposição da artista para auxiliá-la em eventuais medidas que a resguardem das arbitrariedades vigentes e ulteriores que possam ser cometidas por autoridades estatais.

Campo Grande, 16 de setembro de 2017.

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